Lia
A chuva parou, depois de quase uma semana? Parou. Mas está um sol lindo e maravilhoso? Não. Está nublado e o vento acabou de subir a saia longa de uma freira de tão forte. Eu estava do outro lado da rua, em baixo de um toldo de loja de sapatos infantis, fechada já que era domingo. Resolvi então pegar um dos livros de minha mochila para ler. Todos eles estavam amassados e velhos, mas eram legíveis (ainda). Escolhi um que ainda não tinha lido, de nome "A Ladra De Sonhos", de uma escritora chamada Anne Marie. A capa mostrava uma garota de cabelos avermelhados, sentada em um troco caído de árvore na água, bem ladra de sonhos. Tinha cara disso.
As primeiras páginas do livro eram o "Prefácio", que começava da seguinte maneira: "Não posso mais guardar esse segredo. Se não contar agora, logo todos saberão e serei condenada por ser ladra de sonhos.
Não me julgue pela aparência, não me julgue pelo meu comportamento. Me julgue pelo meu modo de querer mudar o mundo, pelo meu modo de usar a razão. Julgue as pessoas por isso.
Já chorei poças, já chorei lagos, já chorei rios e já chorei mares. Agora, vou contar os sonhos que roubei."
Ao fim dessa frase, eu estava chorando. Era perfeitamente perfeito e me deixou tocada pela maneira que essa Anne escreve. O primeiro capítulo de verdade se chamava "O Riacho".
"Compartilho agora o sonho do riacho, de uma jovem sofrida.
Ella Cannen era paupérrima, podia se dizer. Moradora de rua, sem ter para onde ir, sem dinheiro, ninguém aceitava ela para emprego algum. Em uma noite nebulosa, Ella teve um sonho que era o seguinte:
Eu andava sem rumo, se embrenhando pela floresta desconhecida. Onde estava indo? Não sei. Parei em frente a um riacho sombrio pela neblina. Sem rumo e sem conseguir me controlar, avancei mais em direção a água e sem perceber, afundei. O mais engraçado era que eu conseguia respirar, então apenas relaxei. De repente, algo que parecia pressão apertava meu pescoço, fazendo com que eu começasse a afogar. Desesperada, tentei voltar a superfície, o que não acontecia. A força invisível me puxou para o fundo do riacho e tudo ficou escuro.
Na manhã seguinte, passei por aquela rua logo cedo. Na verdade, ela ficava em um beco e como imaginei, estava morta pelo sonho. As coisas acontecem assim, mas somente com quem não acredita no poder dos sonhos. Recolhi o sonho do riacho, pois sabia que um dia seria interessante de contar a alguém.
Hoje, Ella Cannen consegue sua riqueza tão sonhada no céu, feliz por lá."
Novamente chorei. Dessa vez, de pena dessa Ella, que parecia tão sofrida quanto eu, nas ruas. Fechei os olhos, chorando. Quando olhei novamente para o livro, um pedaço de papel estava lá, um tanto amassado. Olhei melhor e vi uma coisa escrita: "Quem é você? Me conte sua história."
Olhei para os lados, confusa, procurando para ver se era pegadinha. A rua estava completamente deserta, então não tive esperanças. Peguei a caneta que carregava na mochila e logo respondi as perguntas: "Meu nome é Lia Fortescue. Minha história é pequena, então deve caber nesse pedaço de papel. Sou órfã, sem família, moro nas ruas a um bom tempo. Tento acreditar em coisas que nunca vi, coisas que não sei o nome. Recentemente apaixonada pelo livro "A Ladra De Sonhos", de Anne Marie sem-sobrenome. E a sua?"
Fechei os olhos, achando aquilo loucura. Quando abri de novo, o papel havia sumido. Estranho...
Catarina
O vento estava complicando minha visão no trabalho. Os diamantes estavam difíceis de serem encontrados, como se estivessem se escondendo. Aquele papel com duas perguntinhas idiotas que eu havia feito o vento levou, legal. Um alarme soou, indicando os quinze minutos de folga do dia. Desci o morro rapidamente, sem perder tempo, sem se importar que quase torci o pé batendo em uma rocha. A fila para o lanche crescia, mas logo consegui um lugar. Isso tudo só para pegar um copo de iogurte e biscoito recheado, veja bem. Peguei o meu e sentei em um cantinho no chão mesmo, assim como todos. De repente, um pedaço de papel bate em meu rosto, o papel das perguntas... respondido! Uma tal de Lia, seja lá quem ela for. A vida dela, pelo o que me contou, parece ser tão ruim quanto a minha, pelo menos eu tenho uma família no alojamento... coitada.
Peguei uma caneta emprestada da secretária da patroa, que verificava o quanto tínhamos trabalhado, para responder minha própria pergunta: "Meu nome é Catarina Jones. Minha história é meio complicada... também sou órfã, sem família (diga-se de passagem), trabalho feito escrava em uma fazenda de extração de pedras preciosas. Moro em um alojamento apertado com umas dez pessoas, que são a minha família. Muito legal o livro parece ser, vou ver por aqui! O que conta, afinal?"
Foi piscar os olhos e o papel sumir. Nada anormal, afinal...



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